quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Uma Pausa (parte VI)

Novidade em “Uma pausa”, obra conjunta escrita por André Halo (blog Penúltima Palavra) e Dante Accioly (blog Página em Construção). Para ler o novo capítulo da história, clique aqui. Para acompanhar as partes anteriores, confira a seção “Uma pausa” na coluna à direita deste site.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Uma Pausa (parte V)



Sob o lume oscilante da lamparina, com as pernas cruzadas sobre a mesa simples de sua saleta e equilibrando-se na cadeira em pequenos movimentos pendulares, o xerife Banton continuava a examinar o pequeno bloco de papel. Seu olhar não era apenas intrigado, aliás, não seria tarefa fácil para um observador decifrá-lo. Contudo, naqueles olhos, estava o contrato de um homem consigo mesmo. Naquela noite, de onde menos se esperaria, da pequena delegacia de Tonstendale, sairia um homem decidido a entender tudo o que estava oculto nas manchas azuis dos muros, árvores e unhas daquela cidade.
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No dia seguinte, às margens do velho Woodloop, em meio à pouquíssima claridade vinda do céu cinzento, o boticário Klaus Hunderger empreendia duas tarefas simultaneamente: a de tentar manter presos à face os óculos que teimavam em escorregar nariz abaixo e a identificação e colheita de ervas medicinais, que obstinadamente ainda cresciam por ali, mesmo sob a pouca luz e o frio frequente. Com o som produzido pelo chacoalhar das águas em sua luta perene contra as pedras, o velho boticário não pôde perceber a aproximação do amigo Ted Banton e, durante um de seus reparos aos inquietos óculos, assustando-se com a súbita presença daquele homenzarrão à sua frente, deixou cair boa parte de sua colheita nas águas rápidas.

- Por Deus, desculpe-me, Klaus!

- Você quase me matou de susto, xerife.

- Não foi a minha intenção, desculpe-me. Suas ervas se foram rio abaixo.

- Ora, não ligue pra isso. Elas não se perderam, apenas foram germinar em outro lugar, dar alento a outros. Deus sabe o que faz. Talvez haja um outro como eu no curso do rio precisando exatamente delas para preparar a dose certa para alguém enfermo.

- O tempo e as ervas afetaram a sua cabeça, Klaus. Nesse mundo há apenas dois tipos de homens: os que lutam por seu próprio bem e os que não ligam pra ninguém. Você e eu somos exceções a essa maldita regra.
Disse com a sua maneira de sempre: um misto entre cordialidade e dureza.
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O boticário deu de ombros, sabia do efeito inútil daquela conversa. Sabia que Ted, embora sempre cordial, carregava no peito, onde algum dia houvera um coração, uma pedra; e que seu papel de amigo não era o mesmo das águas para com as pedras do velho Woodloop, que corriam eternas a arrematar-lhes as arestas, mas sim o de limo, despretensiosa e calmamente, dia após dia, a suavizar-lhe um pouco a existência.

- Ora Ted, você não pensa mesmo desta maneira. Você é um protetor. Um homem íntegro e bom. Um protetor nato! E todos aqui neste fim-de-mundo estamos muito felizes em tê-lo conosco.

- Nem todos, Klaus. Alguém não ficará nada contente quando eu terminar o que há pra ser feito. Aliás, é justamente por isso que vim até aqui.

- Do que está falando...? Ontem na taberna do Will o pessoal comentou ter achado você um tanto estranho durante o funeral. Mas... afinal, quem não estaria estranho depois de um incêndio destes... e ainda... o pobre Tim!

- Exatamente! É exatamente sobre o Sr. O’Brian e o incêndio que quero lhe falar.

- Claro, mas... Em que poderia ser útil? Sequer estava na cidade quando tudo aconteceu. Eu... Bem, eu estava coletando algum azevinho quando vi, ainda lá do alto da cordilheira, o incêndio se alastrar desde a capela até os limites da cid...

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Hunderger foi interrompido pelo xerife Banton:

- Escute Klaus, eu não vim aqui saber onde você estava na madrugada do incêndio. Eu vim pedir para que você analise isto pra mim.

Tirou do bolso o cilindro contendo as mechas brancas do velho leiteiro e entregou-o ao boticário.

- O que é isso, Ted? Santo Deus...! São do pobre Tim?

- Por favor, verifique se há alguma coisa estranha agarrada a eles. Qualquer coisa! E não conte a ninguém sobre isso, sim?

- Claro, Ted! Farei o que puder.

- Espere.
Interrompeu novamente o xerife.

- Você disse que viu o fogo se alastrar desde a igreja?
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"Uma pausa" é uma obra conjunta, escrita por André Halo (do blog Penúltima Palavra) e Dante Accioly (do blog Página em Construção). É possível que outras pessoas e outros blogs passem a contribuir com a história ao longo das próximas edições. Para acompanhar todos os capítulos do conto, confira a seção "Uma pausa" na coluna à direita deste site.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Uma pausa (parte III)

O pequeno cemitério era composto por um par de morrotes que se erguiam logo à frente da cordilheira que guardava a pequena Tonstendale do bravio e incessante vento norte, tão comum por ali. Imediatamente atrás dos morrotes, esgueirando-se entre a cordilheira e estes, escorreria um córrego que alimentaria o velho Woodloop, não fosse a época de temperaturas baixas a impedir qualquer arroubo de fluidez da natureza. Ash Hill então, apenas era notado pelo contraste estabelecido entre a paisagem minimalista dos morros cobertos pelo gelo e as séries de pequenas cruzes e cercas escuras a delinear a geografia simples do lugar.
O local onde jazeria o corpo do Sr. O’Brian havia sido disponibilizado às pressas pelo prefeito Dwight Prudhoe que correu a fazer saber a todos que o ato, mínimo segundo ele, havia sido “uma cortesia da municipalidade para com um de seus mais carismáticos cidadãos”. Contudo, o endereço J37W, guiava o cortejo a um local um tanto quanto escondido, em virtude de uma depressão natural do terreno. “Big” Due, como era conhecido o rechonchudo e bonachão prefeito, até que tentou melhor locação, mas não queria se indispor com o reverendo Smith, que sugeriu um local mais simples para enterrar o leiteiro, alegando não haver necessidade de desperdiçar bom terreno, já escasso em Ash Hill, com “alguém que sequer teria família a visitá-lo no dia dos mortos”. Da pouca nobreza do local escolhido, porém, surgiu o sítio perfeito para acolher as dezenas de presentes em torno da pequena cova, já que o relevo oferecia uma arquibancada tão natural quanto incomum, onde não havia alegria ou gritos e nem nada se comemorava.
Após rápida acomodação, o reverendo Ronald Smith procedeu ao início do funeral. Suas palavras arrostavam os sentimentos dos que ali estavam. Eram vazias de sentido emocional e soavam como a explicação formal de um servidor público à cerca de um procedimento qualquer, no caso, o encaminhamento de uma alma aos céus. A razão da indiferença indisfarçável era óbvia, pois a igreja jamais reconhecera o dom do Sr. O’Brian. Ao contrário, por meio dos sermões daquele mesmo representante, procurara várias vezes dissuadir seus fiéis da idéia de valer-se das antevisões do velho leiteiro, a exemplo do ocorrido na semana que antecedeu o terrível terremoto de 1864.
Naquela ocasião, uma camponesa desconhecida havia percorrido léguas a cavalo desde o vilarejo onde morava, sob forte frio, apenas para uma visita à velha cabana do Sr. O’Brian. O que ela ouviu acabou se espalhando e amedrontando o pessoal não só de Tonstendale, mas de toda a região. Foi durante a missa de domingo, quando o sermão já se encaminhava para o seu fechamento, que o reverendo Smith, acrescentando volume gradualmente à voz já notadamente alterada, perdeu o controle e, praticamente aos berros, desclassificou e expulsou o velho leiteiro da igreja acrescentando: “... e aqueles aos quais minha atitude esteja desagradando aviso: ninguém está acima das palavras e ensinamentos de Cristo, tampouco o está dos poderes de Deus, nosso único e leal salvador e que, a partir de hoje, sob este santo teto, não serão mais tolerados tais esoterismos fantasiosos”. Passados cinco dias exatos, em uma sexta-feira santa, um dos mais fortes abalos sísmicos da história do Alasca praticamente arrasaria a pequena cidade e deixaria como sua maior cicatriz a queda e consequente destruição da torre principal da Congregação Luterana de Tonstendale, não atingindo por pouco a casa paroquial.
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"Uma pausa" é uma obra conjunta, escrita por André Halo (do blog Penúltima Palavra) e Dante Accioly (do blog Página em Construção). É possível que outras pessoas e outros blogs passem a contribuir com a história ao longo das próximas edições. Para acompanhar todos os capítulos do conto, confira a seção "Uma pausa" (na coluna à direita deste site).
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Links para Parte I e Parte II

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Será o Benedito?

Pois bem, o Papa Bento XVI resolveu dar um freio de arrumação no amontoado de denominações e siglas religiosas nascidas ou inspiradas nos evangelhos de Cristo. Afirmou nada menos que a “única Igreja plena” era a Católica de Roma e que “dialogar com outras denominações religiosas não significava reconhecê-las como tal”. E aí, o que era para arrumar, terminou desarrumando tutti per tutti. Se existe um produto bem em falta nos supermercados do pensamento e da convivência entre os povos é exatamente este: o da tolerância, o da aceitação da rica diversidade humana.

Não demorou muito para que a cristandade católica sentisse uma saudade infinda dos antecessores no Trono de Pedro, dentre estes, os de saudosíssima memória João XXIII e João Paulo II. O primeiro através do Concílio Vaticano II fez uma revolução na prática católica da religiosidade: aboliu as missas em latim, aboliu que os padres as celebrassem de costas para a audiência, falou da necessidade de se interagir com todos os credos, demonstrou preocupação com a parte mais vulnerável da humanidade (pobres, indígenas, campesinos, latinos, afro-descendentes, asiáticos etc) e simplificou uma série de ritos. Até o uso da batina por parte dos padres foi tratado de forma secundária. O segundo e mais recente Papa, viajou mundo afora, beijou terras nunca dantes pisadas por alguém alcunhado de Sua Santidade, esteve na China e em Cuba, na Alemanha e na Polônia, e só no Brasil, três vezes. Abriu o diálogo marcroecumênico não apenas com as igrejas cristãs do Leste como também do Oeste e aí se incluem as Igrejas Ortodoxas da Rússia, da Armênia, de Istambul. E avançou a passos largos para lançar pontes de entendimento com judeus, bahá´ís, hindus, muçulmanos, budistas, zoroastrianos.

Na recente visita ao Brasil, há poucos meses, Bento XVI conversou com o presidente Lula da Silva. Pelo que a imprensa repercutiu, quatro pedidos de Sua Santidade foram negados: (1) Que os padres no território nacional fossem isentos de recolhimento de contribuições previdenciárias, carteira assinada, fundo de garantia e outras “regalias” de nossa tradição trabalhista; (2) Que os missionários católicos tivessem acesso irrestrito às terras indígenas e (3) Que autoridades eclesiásticas católicas obtivessem do Itamaraty passaporte diplomático e, por último, mas não menos importante, pediu ao presidente que condenasse abertamente o uso de preservativos masculinos – as famosas camisinhas, gola rolê. O presidente não deixou nada para ser estudado depois, negou os quatro pedidos. Com isso ficou de todo claro que fez o dever de casa: estar atento ao brieffing que lhe é passado antes de encontrar-se com qualquer Chefe de Estado – no caso específico, destaque-se, Bento XVI é o Chefe do Estado do Vaticano, além de líder máximo da cristandade católica apostólica romana. A argumentação de Lula da Silva resplandecia como o sol a pino (aquele sol que geralmente ao meio-dia fica mais incandescente e brilhante): “o Brasil é um país laico, onde Estado e Igreja estão, constitucionalmente, separados.”

Agora, imaginemos que o presidente tivesse atendido os quatro pedidos, ou apenas um, dois ou três destes. Quais seriam as conseqüências imediatas? Não precisa ser nenhum Stephen Hawking para prever a onda de protestos das demais denominações religiosas exigindo o mesmo tratamento dado à religião de Sua Santidade. Afinal, o que o Rabinato da Congregação Judaica do Rio de Janeiro tem a menos que a Cúria Metropolitana de São Paulo? O que a herdeira do terreiro de Menininha do Gantois, na Bahia, tem a menos que a Arquidiocese de Salvador?

Imaginemos também um padre, devotado ao longo de decênios, de ¼, 2/4 ou de ½ século a evangelizar as almas, de repente, alcança seus 75, 80 anos de ininterrupta atividade pastoral, quais seriam suas garantias materiais e financeiras para usufruir o restinho de sua velhice? Seria colocado em algum seminário, asilo, convento e dependeria da boa vontade dos demais? Não. Fez muito bem o presidente Lula afirmar que nessa terra descoberta por Cabral, neste limiar da primeira década do século XXI, “a lei é igual para todos”. E quando falamos todos isso quer dizer que “ninguém é mais igual que ninguém”.

Em seu breve pontificado Bento XVI escreveu encíclicas, publicou livros, aboliu o limbo (aquele lugar onde as almas penadas costumam ficar papeando e expressando angústia de para onde irão depois dali), elevou aos altares novos santos, inclusive o brasileiríssimo Frei Galvão, mas também gerou muita polêmica, sobretudo, quanto ao direito de exclusividade da Igreja Católica de servir como o único link a ligar a criatura ao Criatura, o único caminho para a salvação espiritual.

Bento e Benedito são sinônimos se assim podemos dizer. É tanto que em alguns países Sua Santidade é Benedito XVI e não Bento XVI.

Cabe, então, a pergunta: Será o Benedito?
Texto: Tom Araújo - da equipe do PP
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