segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Uma Pausa (parte V)



Sob o lume oscilante da lamparina, com as pernas cruzadas sobre a mesa simples de sua saleta e equilibrando-se na cadeira em pequenos movimentos pendulares, o xerife Banton continuava a examinar o pequeno bloco de papel. Seu olhar não era apenas intrigado, aliás, não seria tarefa fácil para um observador decifrá-lo. Contudo, naqueles olhos, estava o contrato de um homem consigo mesmo. Naquela noite, de onde menos se esperaria, da pequena delegacia de Tonstendale, sairia um homem decidido a entender tudo o que estava oculto nas manchas azuis dos muros, árvores e unhas daquela cidade.
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No dia seguinte, às margens do velho Woodloop, em meio à pouquíssima claridade vinda do céu cinzento, o boticário Klaus Hunderger empreendia duas tarefas simultaneamente: a de tentar manter presos à face os óculos que teimavam em escorregar nariz abaixo e a identificação e colheita de ervas medicinais, que obstinadamente ainda cresciam por ali, mesmo sob a pouca luz e o frio frequente. Com o som produzido pelo chacoalhar das águas em sua luta perene contra as pedras, o velho boticário não pôde perceber a aproximação do amigo Ted Banton e, durante um de seus reparos aos inquietos óculos, assustando-se com a súbita presença daquele homenzarrão à sua frente, deixou cair boa parte de sua colheita nas águas rápidas.

- Por Deus, desculpe-me, Klaus!

- Você quase me matou de susto, xerife.

- Não foi a minha intenção, desculpe-me. Suas ervas se foram rio abaixo.

- Ora, não ligue pra isso. Elas não se perderam, apenas foram germinar em outro lugar, dar alento a outros. Deus sabe o que faz. Talvez haja um outro como eu no curso do rio precisando exatamente delas para preparar a dose certa para alguém enfermo.

- O tempo e as ervas afetaram a sua cabeça, Klaus. Nesse mundo há apenas dois tipos de homens: os que lutam por seu próprio bem e os que não ligam pra ninguém. Você e eu somos exceções a essa maldita regra.
Disse com a sua maneira de sempre: um misto entre cordialidade e dureza.
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O boticário deu de ombros, sabia do efeito inútil daquela conversa. Sabia que Ted, embora sempre cordial, carregava no peito, onde algum dia houvera um coração, uma pedra; e que seu papel de amigo não era o mesmo das águas para com as pedras do velho Woodloop, que corriam eternas a arrematar-lhes as arestas, mas sim o de limo, despretensiosa e calmamente, dia após dia, a suavizar-lhe um pouco a existência.

- Ora Ted, você não pensa mesmo desta maneira. Você é um protetor. Um homem íntegro e bom. Um protetor nato! E todos aqui neste fim-de-mundo estamos muito felizes em tê-lo conosco.

- Nem todos, Klaus. Alguém não ficará nada contente quando eu terminar o que há pra ser feito. Aliás, é justamente por isso que vim até aqui.

- Do que está falando...? Ontem na taberna do Will o pessoal comentou ter achado você um tanto estranho durante o funeral. Mas... afinal, quem não estaria estranho depois de um incêndio destes... e ainda... o pobre Tim!

- Exatamente! É exatamente sobre o Sr. O’Brian e o incêndio que quero lhe falar.

- Claro, mas... Em que poderia ser útil? Sequer estava na cidade quando tudo aconteceu. Eu... Bem, eu estava coletando algum azevinho quando vi, ainda lá do alto da cordilheira, o incêndio se alastrar desde a capela até os limites da cid...

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Hunderger foi interrompido pelo xerife Banton:

- Escute Klaus, eu não vim aqui saber onde você estava na madrugada do incêndio. Eu vim pedir para que você analise isto pra mim.

Tirou do bolso o cilindro contendo as mechas brancas do velho leiteiro e entregou-o ao boticário.

- O que é isso, Ted? Santo Deus...! São do pobre Tim?

- Por favor, verifique se há alguma coisa estranha agarrada a eles. Qualquer coisa! E não conte a ninguém sobre isso, sim?

- Claro, Ted! Farei o que puder.

- Espere.
Interrompeu novamente o xerife.

- Você disse que viu o fogo se alastrar desde a igreja?
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"Uma pausa" é uma obra conjunta, escrita por André Halo (do blog Penúltima Palavra) e Dante Accioly (do blog Página em Construção). É possível que outras pessoas e outros blogs passem a contribuir com a história ao longo das próximas edições. Para acompanhar todos os capítulos do conto, confira a seção "Uma pausa" na coluna à direita deste site.

Um comentário:

Dante Accioly disse...

Eita! Suspense total!!!!!!!!!