quinta-feira, 12 de julho de 2007

Uma Pausa (parte I)

Lá ao longe, descendo a ladeira, vinha o morto . Caixão, velas, coroas de flores, senhoras e moças chorando e segurando a mão de quem pudessem. Tudo muito preto e soturno. Como deve ser qualquer enterro na cidade que quase nunca amanhece. Tonstendale, ao extremo norte do Alasca mais gelado, era, até o segundo anterior ao incêndio, uma cidade pequena e calma mas que guardava seu tesouro mais rico no coração irremediavelmente, digo, maravilhosamente provinciano de cada habitante. Por aquelas bandas só se reconhecia a luz do sol durante três mêses por ano e, no mais, a cidade era uma eterna negociação entre o crepúsculo e a mais negra noite.
Não bastasse a paisagem gris, aquele por quem as ladainhas soavam não era um cidadão qualquer. Descendo as ruas estreitas, o cortejo parecia espalhar por elas o gosto amargo da saudade que já chegara. Temor. Passava como um rio de águas turvas e abundantes, entrando por frestas de portas e janelas, inundando os corações de uma sensação temerosa, inexplicável, como a notícia súbita de uma doença incurável. As lágrimas tímidas cobriam de um brilho secreto a dor de cada murmuro, de cada lamento incontido. Na janela, de quem ousava abri-la, pairava um vão de tempo, como se a casa sentida quisesse ter de volta o som dos cumprimentos cordiais costumeiros ou mesmo o ruído brejeiro, inestimável, da carroça que vinha cedo com o leite. Era como se as casas também chorassem a ausência agora eterna do Sr. O'Brian.
O Sr. Timothy Foster O'Brian era um homem simples. Embora as suas posses se resumissem a uma pequena propriedade, situada às margens do pequeno Rio Woodloop, um velho pangaré forte, uma carroça feita em maple, uma dezena de vacas e um touro da raça chuckwagon, ferramentas para o trato com o gado, que incluía o pequeno banco de uma só perna, e uns poucos utensílios domésticos, o Sr. O'Brian era dono de um bem maior, um dom, cuja excepcionalidade encantava a todos: o poder de antever acontecimentos. Mas naquela manhã, cinza como os cabelos do leiteiro, no que quer que se pusesse olhar havia o lúgubre. Tudo era testemunho do desconsolo, do golpe sofrido pela cidade, do vazio daquela perda. E assim seguiu-se o mórbido passeio, rumo a despedida final e a inumação.
.
"Uma pausa" é uma obra conjunta, escrita por André Halo (do blog Penúltima Palavra) e Dante Accioly (do blog Página em Construção). É possível que outras pessoas e outros blogs passem a contribuir com a história ao longo das próximas edições. Para acompanhar todos os capítulos do conto, confira a seção "Uma pausa" (na coluna à direita deste site).
.
Para ler a Parte II clique aqui.

5 comentários:

Dante Accioly disse...

Eita, macho. Tu escreve bem demais!

André Halo disse...

O correto seria: "eita, macho! Tu escreveS bem demais!".
...kkkkkkkkkk
Pára com aquele jabazão e escreve logo alguma coisa nova no teu site, Signore Alighiere.
Abs

Dante Accioly disse...

Desculpa:

Eita, macho! Tu escreves bem demais!


Ahahahahah!!!!!!!!!!

Unknown disse...

Uau!

Inaugurando participação nesse blog, que me custou um pouco de 'esforço extra limite' após 'peneroso' dia de labuta de uma mera criatura entre criaturas... mas, enfim, decifrando formatos e autorias...

Estou eu cá me deliciando com os textos halísticos e dantescos, mas confesso ser algo agonizante a espera de capítulos em mistério sobre a trajetória de desfecho parcial em tom de azul, assinalado pelo pigmento mortuário traçado no destino daquele cidadão 'tonkstendalês'...

Homem de 'um lugar algum', vivente na mente de um sonhar conjunto que, somente ao clã de confrades, e somente mesmo, cabe a divina tecelagem do destino do leiteiro em sua 'gris-blue mille', rumo ao que existe além do arco-íris...

E que, 'por acaso', 'Arco de Íris' não agraciava exatamente aquela 'entidade meta-e-física' em sua trajetória pela 'vida láctea', obra de seus homens-deuses criadores...

Aguardo a carroça das 5, com chá do Sri Lanka, trazido especialmente do passado pela Companhia da Índias Orientais, já que o leite habitual que jaz seco em sua 'teta' simbóica, junto ao "mórbido passeio, rumo à despedida final e à inumação"...

Esforçadamente escrito o comentário, reitero a espera da carroça do chá...

K

André Halo disse...

Grande KK,

seja benvinda ao intrigante universo tonstendeiliano!
Valeu a visita.

Beijo procês!