quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Uma Pausa (parte VI)

Novidade em “Uma pausa”, obra conjunta escrita por André Halo (blog Penúltima Palavra) e Dante Accioly (blog Página em Construção). Para ler o novo capítulo da história, clique aqui. Para acompanhar as partes anteriores, confira a seção “Uma pausa” na coluna à direita deste site.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Uma Pausa (parte V)



Sob o lume oscilante da lamparina, com as pernas cruzadas sobre a mesa simples de sua saleta e equilibrando-se na cadeira em pequenos movimentos pendulares, o xerife Banton continuava a examinar o pequeno bloco de papel. Seu olhar não era apenas intrigado, aliás, não seria tarefa fácil para um observador decifrá-lo. Contudo, naqueles olhos, estava o contrato de um homem consigo mesmo. Naquela noite, de onde menos se esperaria, da pequena delegacia de Tonstendale, sairia um homem decidido a entender tudo o que estava oculto nas manchas azuis dos muros, árvores e unhas daquela cidade.
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No dia seguinte, às margens do velho Woodloop, em meio à pouquíssima claridade vinda do céu cinzento, o boticário Klaus Hunderger empreendia duas tarefas simultaneamente: a de tentar manter presos à face os óculos que teimavam em escorregar nariz abaixo e a identificação e colheita de ervas medicinais, que obstinadamente ainda cresciam por ali, mesmo sob a pouca luz e o frio frequente. Com o som produzido pelo chacoalhar das águas em sua luta perene contra as pedras, o velho boticário não pôde perceber a aproximação do amigo Ted Banton e, durante um de seus reparos aos inquietos óculos, assustando-se com a súbita presença daquele homenzarrão à sua frente, deixou cair boa parte de sua colheita nas águas rápidas.

- Por Deus, desculpe-me, Klaus!

- Você quase me matou de susto, xerife.

- Não foi a minha intenção, desculpe-me. Suas ervas se foram rio abaixo.

- Ora, não ligue pra isso. Elas não se perderam, apenas foram germinar em outro lugar, dar alento a outros. Deus sabe o que faz. Talvez haja um outro como eu no curso do rio precisando exatamente delas para preparar a dose certa para alguém enfermo.

- O tempo e as ervas afetaram a sua cabeça, Klaus. Nesse mundo há apenas dois tipos de homens: os que lutam por seu próprio bem e os que não ligam pra ninguém. Você e eu somos exceções a essa maldita regra.
Disse com a sua maneira de sempre: um misto entre cordialidade e dureza.
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O boticário deu de ombros, sabia do efeito inútil daquela conversa. Sabia que Ted, embora sempre cordial, carregava no peito, onde algum dia houvera um coração, uma pedra; e que seu papel de amigo não era o mesmo das águas para com as pedras do velho Woodloop, que corriam eternas a arrematar-lhes as arestas, mas sim o de limo, despretensiosa e calmamente, dia após dia, a suavizar-lhe um pouco a existência.

- Ora Ted, você não pensa mesmo desta maneira. Você é um protetor. Um homem íntegro e bom. Um protetor nato! E todos aqui neste fim-de-mundo estamos muito felizes em tê-lo conosco.

- Nem todos, Klaus. Alguém não ficará nada contente quando eu terminar o que há pra ser feito. Aliás, é justamente por isso que vim até aqui.

- Do que está falando...? Ontem na taberna do Will o pessoal comentou ter achado você um tanto estranho durante o funeral. Mas... afinal, quem não estaria estranho depois de um incêndio destes... e ainda... o pobre Tim!

- Exatamente! É exatamente sobre o Sr. O’Brian e o incêndio que quero lhe falar.

- Claro, mas... Em que poderia ser útil? Sequer estava na cidade quando tudo aconteceu. Eu... Bem, eu estava coletando algum azevinho quando vi, ainda lá do alto da cordilheira, o incêndio se alastrar desde a capela até os limites da cid...

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Hunderger foi interrompido pelo xerife Banton:

- Escute Klaus, eu não vim aqui saber onde você estava na madrugada do incêndio. Eu vim pedir para que você analise isto pra mim.

Tirou do bolso o cilindro contendo as mechas brancas do velho leiteiro e entregou-o ao boticário.

- O que é isso, Ted? Santo Deus...! São do pobre Tim?

- Por favor, verifique se há alguma coisa estranha agarrada a eles. Qualquer coisa! E não conte a ninguém sobre isso, sim?

- Claro, Ted! Farei o que puder.

- Espere.
Interrompeu novamente o xerife.

- Você disse que viu o fogo se alastrar desde a igreja?
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quarta-feira, 25 de julho de 2007

Uma pausa (parte III)

O pequeno cemitério era composto por um par de morrotes que se erguiam logo à frente da cordilheira que guardava a pequena Tonstendale do bravio e incessante vento norte, tão comum por ali. Imediatamente atrás dos morrotes, esgueirando-se entre a cordilheira e estes, escorreria um córrego que alimentaria o velho Woodloop, não fosse a época de temperaturas baixas a impedir qualquer arroubo de fluidez da natureza. Ash Hill então, apenas era notado pelo contraste estabelecido entre a paisagem minimalista dos morros cobertos pelo gelo e as séries de pequenas cruzes e cercas escuras a delinear a geografia simples do lugar.
O local onde jazeria o corpo do Sr. O’Brian havia sido disponibilizado às pressas pelo prefeito Dwight Prudhoe que correu a fazer saber a todos que o ato, mínimo segundo ele, havia sido “uma cortesia da municipalidade para com um de seus mais carismáticos cidadãos”. Contudo, o endereço J37W, guiava o cortejo a um local um tanto quanto escondido, em virtude de uma depressão natural do terreno. “Big” Due, como era conhecido o rechonchudo e bonachão prefeito, até que tentou melhor locação, mas não queria se indispor com o reverendo Smith, que sugeriu um local mais simples para enterrar o leiteiro, alegando não haver necessidade de desperdiçar bom terreno, já escasso em Ash Hill, com “alguém que sequer teria família a visitá-lo no dia dos mortos”. Da pouca nobreza do local escolhido, porém, surgiu o sítio perfeito para acolher as dezenas de presentes em torno da pequena cova, já que o relevo oferecia uma arquibancada tão natural quanto incomum, onde não havia alegria ou gritos e nem nada se comemorava.
Após rápida acomodação, o reverendo Ronald Smith procedeu ao início do funeral. Suas palavras arrostavam os sentimentos dos que ali estavam. Eram vazias de sentido emocional e soavam como a explicação formal de um servidor público à cerca de um procedimento qualquer, no caso, o encaminhamento de uma alma aos céus. A razão da indiferença indisfarçável era óbvia, pois a igreja jamais reconhecera o dom do Sr. O’Brian. Ao contrário, por meio dos sermões daquele mesmo representante, procurara várias vezes dissuadir seus fiéis da idéia de valer-se das antevisões do velho leiteiro, a exemplo do ocorrido na semana que antecedeu o terrível terremoto de 1864.
Naquela ocasião, uma camponesa desconhecida havia percorrido léguas a cavalo desde o vilarejo onde morava, sob forte frio, apenas para uma visita à velha cabana do Sr. O’Brian. O que ela ouviu acabou se espalhando e amedrontando o pessoal não só de Tonstendale, mas de toda a região. Foi durante a missa de domingo, quando o sermão já se encaminhava para o seu fechamento, que o reverendo Smith, acrescentando volume gradualmente à voz já notadamente alterada, perdeu o controle e, praticamente aos berros, desclassificou e expulsou o velho leiteiro da igreja acrescentando: “... e aqueles aos quais minha atitude esteja desagradando aviso: ninguém está acima das palavras e ensinamentos de Cristo, tampouco o está dos poderes de Deus, nosso único e leal salvador e que, a partir de hoje, sob este santo teto, não serão mais tolerados tais esoterismos fantasiosos”. Passados cinco dias exatos, em uma sexta-feira santa, um dos mais fortes abalos sísmicos da história do Alasca praticamente arrasaria a pequena cidade e deixaria como sua maior cicatriz a queda e consequente destruição da torre principal da Congregação Luterana de Tonstendale, não atingindo por pouco a casa paroquial.
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Links para Parte I e Parte II

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Será o Benedito?

Pois bem, o Papa Bento XVI resolveu dar um freio de arrumação no amontoado de denominações e siglas religiosas nascidas ou inspiradas nos evangelhos de Cristo. Afirmou nada menos que a “única Igreja plena” era a Católica de Roma e que “dialogar com outras denominações religiosas não significava reconhecê-las como tal”. E aí, o que era para arrumar, terminou desarrumando tutti per tutti. Se existe um produto bem em falta nos supermercados do pensamento e da convivência entre os povos é exatamente este: o da tolerância, o da aceitação da rica diversidade humana.

Não demorou muito para que a cristandade católica sentisse uma saudade infinda dos antecessores no Trono de Pedro, dentre estes, os de saudosíssima memória João XXIII e João Paulo II. O primeiro através do Concílio Vaticano II fez uma revolução na prática católica da religiosidade: aboliu as missas em latim, aboliu que os padres as celebrassem de costas para a audiência, falou da necessidade de se interagir com todos os credos, demonstrou preocupação com a parte mais vulnerável da humanidade (pobres, indígenas, campesinos, latinos, afro-descendentes, asiáticos etc) e simplificou uma série de ritos. Até o uso da batina por parte dos padres foi tratado de forma secundária. O segundo e mais recente Papa, viajou mundo afora, beijou terras nunca dantes pisadas por alguém alcunhado de Sua Santidade, esteve na China e em Cuba, na Alemanha e na Polônia, e só no Brasil, três vezes. Abriu o diálogo marcroecumênico não apenas com as igrejas cristãs do Leste como também do Oeste e aí se incluem as Igrejas Ortodoxas da Rússia, da Armênia, de Istambul. E avançou a passos largos para lançar pontes de entendimento com judeus, bahá´ís, hindus, muçulmanos, budistas, zoroastrianos.

Na recente visita ao Brasil, há poucos meses, Bento XVI conversou com o presidente Lula da Silva. Pelo que a imprensa repercutiu, quatro pedidos de Sua Santidade foram negados: (1) Que os padres no território nacional fossem isentos de recolhimento de contribuições previdenciárias, carteira assinada, fundo de garantia e outras “regalias” de nossa tradição trabalhista; (2) Que os missionários católicos tivessem acesso irrestrito às terras indígenas e (3) Que autoridades eclesiásticas católicas obtivessem do Itamaraty passaporte diplomático e, por último, mas não menos importante, pediu ao presidente que condenasse abertamente o uso de preservativos masculinos – as famosas camisinhas, gola rolê. O presidente não deixou nada para ser estudado depois, negou os quatro pedidos. Com isso ficou de todo claro que fez o dever de casa: estar atento ao brieffing que lhe é passado antes de encontrar-se com qualquer Chefe de Estado – no caso específico, destaque-se, Bento XVI é o Chefe do Estado do Vaticano, além de líder máximo da cristandade católica apostólica romana. A argumentação de Lula da Silva resplandecia como o sol a pino (aquele sol que geralmente ao meio-dia fica mais incandescente e brilhante): “o Brasil é um país laico, onde Estado e Igreja estão, constitucionalmente, separados.”

Agora, imaginemos que o presidente tivesse atendido os quatro pedidos, ou apenas um, dois ou três destes. Quais seriam as conseqüências imediatas? Não precisa ser nenhum Stephen Hawking para prever a onda de protestos das demais denominações religiosas exigindo o mesmo tratamento dado à religião de Sua Santidade. Afinal, o que o Rabinato da Congregação Judaica do Rio de Janeiro tem a menos que a Cúria Metropolitana de São Paulo? O que a herdeira do terreiro de Menininha do Gantois, na Bahia, tem a menos que a Arquidiocese de Salvador?

Imaginemos também um padre, devotado ao longo de decênios, de ¼, 2/4 ou de ½ século a evangelizar as almas, de repente, alcança seus 75, 80 anos de ininterrupta atividade pastoral, quais seriam suas garantias materiais e financeiras para usufruir o restinho de sua velhice? Seria colocado em algum seminário, asilo, convento e dependeria da boa vontade dos demais? Não. Fez muito bem o presidente Lula afirmar que nessa terra descoberta por Cabral, neste limiar da primeira década do século XXI, “a lei é igual para todos”. E quando falamos todos isso quer dizer que “ninguém é mais igual que ninguém”.

Em seu breve pontificado Bento XVI escreveu encíclicas, publicou livros, aboliu o limbo (aquele lugar onde as almas penadas costumam ficar papeando e expressando angústia de para onde irão depois dali), elevou aos altares novos santos, inclusive o brasileiríssimo Frei Galvão, mas também gerou muita polêmica, sobretudo, quanto ao direito de exclusividade da Igreja Católica de servir como o único link a ligar a criatura ao Criatura, o único caminho para a salvação espiritual.

Bento e Benedito são sinônimos se assim podemos dizer. É tanto que em alguns países Sua Santidade é Benedito XVI e não Bento XVI.

Cabe, então, a pergunta: Será o Benedito?
Texto: Tom Araújo - da equipe do PP
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quinta-feira, 12 de julho de 2007

Uma Pausa (parte I)

Lá ao longe, descendo a ladeira, vinha o morto . Caixão, velas, coroas de flores, senhoras e moças chorando e segurando a mão de quem pudessem. Tudo muito preto e soturno. Como deve ser qualquer enterro na cidade que quase nunca amanhece. Tonstendale, ao extremo norte do Alasca mais gelado, era, até o segundo anterior ao incêndio, uma cidade pequena e calma mas que guardava seu tesouro mais rico no coração irremediavelmente, digo, maravilhosamente provinciano de cada habitante. Por aquelas bandas só se reconhecia a luz do sol durante três mêses por ano e, no mais, a cidade era uma eterna negociação entre o crepúsculo e a mais negra noite.
Não bastasse a paisagem gris, aquele por quem as ladainhas soavam não era um cidadão qualquer. Descendo as ruas estreitas, o cortejo parecia espalhar por elas o gosto amargo da saudade que já chegara. Temor. Passava como um rio de águas turvas e abundantes, entrando por frestas de portas e janelas, inundando os corações de uma sensação temerosa, inexplicável, como a notícia súbita de uma doença incurável. As lágrimas tímidas cobriam de um brilho secreto a dor de cada murmuro, de cada lamento incontido. Na janela, de quem ousava abri-la, pairava um vão de tempo, como se a casa sentida quisesse ter de volta o som dos cumprimentos cordiais costumeiros ou mesmo o ruído brejeiro, inestimável, da carroça que vinha cedo com o leite. Era como se as casas também chorassem a ausência agora eterna do Sr. O'Brian.
O Sr. Timothy Foster O'Brian era um homem simples. Embora as suas posses se resumissem a uma pequena propriedade, situada às margens do pequeno Rio Woodloop, um velho pangaré forte, uma carroça feita em maple, uma dezena de vacas e um touro da raça chuckwagon, ferramentas para o trato com o gado, que incluía o pequeno banco de uma só perna, e uns poucos utensílios domésticos, o Sr. O'Brian era dono de um bem maior, um dom, cuja excepcionalidade encantava a todos: o poder de antever acontecimentos. Mas naquela manhã, cinza como os cabelos do leiteiro, no que quer que se pusesse olhar havia o lúgubre. Tudo era testemunho do desconsolo, do golpe sofrido pela cidade, do vazio daquela perda. E assim seguiu-se o mórbido passeio, rumo a despedida final e a inumação.
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"Uma pausa" é uma obra conjunta, escrita por André Halo (do blog Penúltima Palavra) e Dante Accioly (do blog Página em Construção). É possível que outras pessoas e outros blogs passem a contribuir com a história ao longo das próximas edições. Para acompanhar todos os capítulos do conto, confira a seção "Uma pausa" (na coluna à direita deste site).
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quarta-feira, 11 de julho de 2007

Sem Medo De Ser Feliz

As jogadas estavam sendo criadas com perfeição, há meses não se via o time jogar tão bem. Até Mazola, que depois de recuperado fisicamente da contusão ainda não voltara a apresentar a confiança habitual, jogava como se nunca houvesse sequer esfolado o dedão no duro chão de terra batida lá do Varjão.
Era bonito de se ver; valia a classificação para a final do campeonato: bola para Tatu, dele pra Zé Telo; metade do campo já era do Esporte Clube Buracão; lançamento certeiro no pé de Tinga e era só fazer: só ele, o goleiro e o gol, este que na visão de Tinga estava para o franzino goleiro do Barro Preto como o Pão de Açúcar está para o Cristo ou o mês está para o salário do próprio Tinga. Ouviu-se: não é possível, é só fazer, é só acreditar, chuta, chuta! E não é que Tinga deu um passo a mais, veio o zagueiro do Barrão e zap... levou bola, chuteira e canela de Tinga, só não levou um tucho de grama porque esta já não habitava aquelas paragens desde que futebol era com bola de meia. Pênalti! Estava marcado e não havia mesmo dúvida: penalidade máxima!
Na cabeça das pessoas que assistiam à peleja o mundo havia acabado de ser criado naquele instante. A expectativa do inusitado se misturava ao drama da responsabilidade que um pedreiro como Tinga jamais havia experimentado. Nem na final de noventa e cinco, contra o temido Risca Faca, da baixada, data em que o time, recém montado, jogava com a leveza da não responsabilidade histórica, desde então não se via tanta aflição por parte da torcida. Daquela vez se perdera. Aquele dia não; aquele jogo era o jogo da virada para todos do Buracão que finalmente, após tantos anos, podiam sonhar com a consagração, com o gosto doce e inigualável da vitória. Tudo era construção de segunda a sábado, que se fazia com as mãos na massa cinza do cimento e a cabeça colorida com o vermelho do terrão batido da baixada, para no fim de tudo apenas poder sentir o gosto doce, a sensação azul do gol.
E foi com essa confiança que Tinga olhou para a bola. Girando levemente o olho, mirava agora o canto onde supostamente pretendia fazer encaixar a bola, que por sua vez era vigiada pelo franzino goleiro barropretense que tinha o ato de piscar naquele momento como um dos sete pecados capitais. Tinga mirou novamente ambos, uma passada pela bola e outra conferida no canto desejado. O goleiro não se ousava fitar pois, sabe-se, tal prática não é de bom agouro antes do momento mesmo. Era chegada a hora. Poderia-se ver o ímpeto personificado nos olhos de Tinga não fosse a longa cabeleira suada a transfigurar-lhe a face. Partiu... havia tomado pouca distância, como o fazia Rivelino, seu ídolo de infância; três passos e estava na bola; a terra, há anos castigada, respondia aos passos do atacante com um suspiro de poeira elevando-se atrás das passadas. Bateu... era uma colocada e muito bem colocada; uma parábola que a medida em que se construía descrevia-se como um arco da mais perfeita coluna do mais perfeito palácio da mais perfeita arquitetura. Goleiro estava nela, tinha escolhido o canto certo e esticava-se como a língua de um lagarto buscando o inseto voador. Foi uma boa tentativa, mas em vão. Gol.

terça-feira, 10 de julho de 2007

O Gato e o Leão (The Cat and the Income Tax)

Era uma vez um gato que adorava falar que era técnico em eletrônica. Quase sempre gostava de estar em cima do muro, ouvindo o rádio que alguém esquecia na rua, e murmurava: “miau, adoro essa canção”. Falava sentindo um vazio imenso em seu coração proletário. Sim, pois só fazia filhos sem que tivesse interesse algum por eles ou mesmo emprego, renda que os sustentasse.
Belo dia, o gato, que era preto pela simples falta de escolha a que Deus sabiamente nos submete a todos, gatos ou sapos, pulou do muro e decidiu mudar de vida. Meteu a mão na carteira e tirou um velho pé-de-coelho que possuía desde os tempos da ditadura militar e que lhe fora roubado, certa vez, por uma pessoa de extremo mal gosto que, pensando melhor, em seguida o devolveu. De posse do objeto pôs-se a chorar de forma constrangedora – mesmo para um gato. Terminada a “gatarze” continuou caminhando até que avistou, do lado esquerdo, onde, por pura confusão juvenil, sempre percebera como o direito, o guarda de trânsito multando as pessoas sem que ao menos elas apresentassem trajes inadequados ou estivessem felizes. Achou aquilo de uma extrema falta de sensibilidade e foi voando falar com o oficial: “escuta aqui ó, seu fulano, não é direito isso ai que o senhor está fazendo, ora essa!” Disse e danou a correr como nunca antes alguém havia se atrevido. Enquanto corria pensava na loucura que acabara de cometer. – Imagine, correr por um motivo desses... Enfim, quando parou, voltou a ter aquela sensação de vazio que lhe corroeria a alma, como fosse prerrogativa de gatos possuir tais esoterismos. Mesmo assim aquilo acabara com suas últimas forças e desse modo ele se viu forçado a mergulhar no vão que se lhe havia formado dentro do esguio corpo, como a lhe torturar e triturar – por que não? - os ossos. Foi uma inadiável e profunda viagem interior quando ele, que nunca antes pensara em se matar, definiu isso como prioridade máxima em sua vida.
Já refeito e com ares de galhofa, voltou para casa com um sorriso nos lábios e a certeza de que nunca mais sairia novamente de seu bairro a fim de encontrar o que só mesmo a vida pode nos oferecer: a dignidade.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Amor de pai e mãe

Amor de pai e mãe para um filho é como um outro filho que nasce sem se notar. Sem festa nem santinho, sem charuto e sem visita. Ele nasce muito junto com o filho mas, ao contrário deste, não termina de nascer de uma vez, não nasce de um parto só. Nasce aos poucos, às vezes desnasce, retrai-se um pouco, não se mostra inteiro para não perder-se, o amor... cordão umbilical que une os seres.
O nosso amor para com os pais também sofre um estranho processo: fica covarde ao achar que por ser gratuito e tanto não vai acabar. Sabemos que não vai mesmo e contamos com ele como certo. Então passamos a viver as nossas vidas modernas, cheias de eloqüências e certezas, de projetos cheios de técnicas e otimizações. Oferecemos ao chefe honrarias de rei e à mãe um bom dia seco. Hora-extra no trabalho e cara feia para ajudar o pai na pintura do portão. Daí damos pra dizer que eles estão velhos, que não entendem nada de nada, que só sabem amar. Esquecemos que é necessária uma vida inteira para aprender essa lição.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Haaaaaaaaja paciêeeeeencia!

Não é preciso muito tempo para que você identifique um tipo muito comum no Brasil, aliás, no mundo: forma contraída de malandro, o mala. Afinal, o mala, aquele sujeito que está sempre dando um jeito de arruinar com a sua paciência, não escolhe nacionalidade. Mas cuidemos aqui apenas dos malas nacionais e quer ver como você é capaz de saber exatamente do que se trata? Observemos uma reduzida lista: Gugu Liberato, Hebe Camargo, Roriz (porra, político não vale), Faustão, aquele cara do seu trabalho (isso, aquele mesmo), o cara das Casas Bahia, Luciano Huck e Angélica, a Siri do BBB, aliás o BBB todo, não? Enfim, seria interminável. Mas essa embolação toda foi pra falar apenas de um mala em especial, o mala-master, the king of suitcases, ninguém senão ele, o mais odiado, xingado, amaldiçoado, a alegria dos departamentos comerciais de TVs a cabo: Galvão Bueno.
Tão famoso quanto o próprio mala em questão são suas gafes, exageros, más-interpretações, teorias absurdas, contradições. São incontáveis os blogs, sites, mensagens de e-mail anti-galvão, onde são descritas ou transcritas as suas mais famosas pérolas e onde o povo, oprimido pelo peso onipresente dos jargões deste mala desprovido de qualquer alça, lança as suas lamurias. Como é sempre muito divertido rever os tropeços destas figuras, digamos, pouco amadas, vamos a algumas.
Por falar em rever, há aquela famosa em que Mr. Bueno dispara: “daqui a pouco capítulo inédito de Vale a Pena Ver de Novo, não perca!”. Ou a outra em que o malandro, na ocasião do primeiro título de Fernando Alonso sobre Michael Schumacher, ao ver estampada na tela uma camiseta de um simpatizante do piloto espanhol na qual estava escrito “SCHUMACHER WHO?”, mandou uma de suas traduções: “e ta lá na camiseta, Reginaldo, ‘cadê o Schumacher?’”. E ontem, durante o jogo da seleção dunguiana versus o timeco do Equador, Galvão solta a mais recente de suas pérolas, aquela que me fez tomar a decisão de dar uma mijada e ir dormir. Ao ouvir o técnico equatoriano gritar aos seus jogadores “despacio, despacio…” Galvão mais uma vez traduz para nós, pobres ignorantes: “ele está dizendo para os seus jogadores darem dez passes… deve ser para segurar o jogo”.
Tóim!
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quarta-feira, 4 de julho de 2007

Palavrório Infrequente

Volta e meia eu me distancio de minha condição essencial, da forma despreocupada de pensar (ou não fazê-lo) a própria vida que caracteriza o brasileiro e então sai um texto do tipo ao que se segue. Portanto, caros leitores, considerem este primeiro parágrafo uma desculpa prévia.
Somos assim, achamos uma cabeça separada do corpo no meio do mato, notamos que ela era de alguém que poderia ser a nossa vizinha e então nos indignamos: - Você viu, rapaz? Acharam a menina do sudoeste. O vizinho retruca em divagação sobre o quão atroz está o mundo em que vivemos e antes mesmo que o elevador baixe ao nível do assassino nos despedimos. Sem pensar nas milhares de cabeças que rolam diariamente dos morros cariocas, emergem dos canais mal-cheirosos do Recife ou de outros submundos logo abaixo do Plano Piloto, ligamos o carro e retornamos ao conforto de nosso mundo, este sim, senão real, um mundo mais palatável, embalado pelo que a Câmara dos Deputados produz de melhor, a sua rádio.
Enquanto isso, no Senado Federal, uma ordem de suplentes, financiadores das campanhas titulares, perdem noites de sono em trabalho penoso, empenhado, em torno de um único objetivo: garantir a impossibilidade de um julgamento honesto, com seus trâmites naturais de testemunhos, convocações e as temidas acareações, verdadeiras latrinas de vidro, onde o rodopiar da porcaria é observada como grandioso espetáculo, antes de ser lançada aos canos obscuros e corroídos de nossa justiça. Lá embaixo estamos nós.
Na Câmara Federal, após este primeiro semestre de nova legislatura, fica muito clara a imensa motivação na produção de um novo engodo qualquer, travestido de discussão a cerca da reforma política, para dar satisfação à sociedade quando do surgimento de um escândalo qualquer que envolva os seus membros. Reforma mesmo só dos salários, que estão novinhos em folha (com o perdão do trocadilho).
Na China, um cidadão especialista em América Latina observa que o grande problema do Brasil é a enorme desigualdade social. Comparando o desenvolvimento ao mover de uma carroça, o rapaz observa que uma das rodas é a economia e a outra é a condição de vida da população, poder de compra, níveis de violência, corrupção, etc, e que elas devem girar na mesma velocidade. - Rapaz, então este chinês é um gênio! Sim, cabe aqui a ironia, pois ironia é a primeira ferramenta da qual lançam mão os desesperados. Os que se sentem impotentes diante da mais completa falência de nossas instituições.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Já dizia o amigo Tom, certa feita. (Lição do Aparício)


No Curso de Medicina, o professor se dirige ao aluno e pergunta: Quantos rins nós temos?
- Quatro! Responde o aluno.
- Quatro? Replica o professor, arrogante, daqueles que se comprazem em tripudiar sobre os erros dos alunos.
- Traga um feixe de capim, pois temos um asno na sala - ordena o professor a seu auxiliar.
- E para mim um cafezinho! Replicou o aluno ao auxiliar do mestre.
O professor ficou irado e expulsou o aluno da sala. O aluno era, entretanto, o humorista Aparício Torelly Aporelly (1895-1971), mais conhecido como o "Barão de Itararé".
Ao sair da sala, o aluno ainda teve a audácia de corrigir o furioso mestre:
- O senhor me perguntou quantos rins "nós temos". "Nós " temos quatro: dois meus e dois teus... Tenha um bom apetite!

*Moral da história: A vida exige muito mais compreensão do que conhecimento.*

quinta-feira, 14 de junho de 2007

TOCA MUUUUUUUUUUITO!

- Rapaz, cê viu o Hamilton?

- Neguinho dá show, dá não?

- Toca muito!

- Eu fico impressionado com a habilidade, a destreza... bota os outros no chinelo.

- É verdade, mas o resto do pessoal toca muito também, não?

- Claro, toca sim, mas o neguinho é demais!

- Neguinho? Ta certo que essa discussão sobre ações afirmativas, cotas e o tal resgate histórico tá na pauta, mas Hamilton de Holanda... neguinho?

- Que Holanda o quê, maluco... o cara é inglês!
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- O Hamilton, inglês, tá doido?

- Que Amíiiiiiltom, rapaz... eu to falando do Rêeemiltom, o neguinho da McLarem... fórmula 1, entende?

- Ahhhhhhh... eu achei que era do bandolinista.


- Bandoliquê?


- Puts...!

terça-feira, 12 de junho de 2007

AFORISMO DO DIA


"Se você quer trepar, vá à faculdade. Mas se você quer aprender alguma coisa, vá à biblioteca."


Frank Zappa

Inacreditável (poema do)

Eis a roda da vida - ou seria a rosa da vida? - a anunciar novos ventos, certas marés, outros giros... E o sentido de tudo se desfaz, e o sentido se faz non sense, sem sentido. Eis a anunciação, como diria o menestréu: a alvorada se impõe, o horizonte se descortina, a vida deixa de ser fluência e volta a ser sina.
E eu volto a ser menino. Inconstante, inconseqüente, traquino: não me importam as cicatrizes, e sim a trajetória das quedas, os solavancos do destino. Aprecio de cada intempérie o conforto do desconhecido, o fascínio das descobertas, o frisson das surpresas. Adoro quando me acometem as vilezas. É quando se perde em mim o clamor perigoso do peito em pulsar fluente, ininterrupto. É quando fico mais coerente, e ao mesmo tempo abrupto: antes do beijo, a pele rente. Antes do cortejo, o olhar lascivo. Antes da carícia, o toque permissivo.
Eis a roda da vida cantando a música de Johson, o Jack, arqui-amigo de Buarque, o Chico: "Let it be sung, so we can carry on...". Eis a cantoria do sentimento: de novo o homem, prisioneiro do tormento, de novo o mar, o professor de todos os momentos. Mero peixe, navego sob o sol que beija a água doce do mar, buscando o sal fluvial do beijo.
Eis que volto a ser menino: o ser impávido, ferino, mas navegante. Inocente, míope errante, mas sublime infante. Deixando o corpo solto no ar ensinar ao vento como voar. Eis de novo o menino: encabulado pelo olhar da pequena, encantado pela brisa serena, enlaçado pela alvura da pele... que não é morena.

Fábio Góis

Elaborando sobre gente humilde e Gente Humilde

Como dizia o compositor: "E aí me dá uma inveja dessa gente, que vai em frente sem nem ter com quem contar." É isso mesmo, dos quase cento e noventa milhões de brasileiros, a vasta maioria leva ao pé da letra a letra de Gente Humilde: segue em frente apesar de tudo e todos e sempre com a indefectível sina do "sem ter com quem contar". Cada vez mais um Brasil dos privilegiados e dos semi-privilegiados, aquela casta dos que desfrutam do apoio (financeiro, moral e/ou imoral) que provêm dos tais privilegiados. São os donos da mídia, os donos do executivo, legislativo e judiciário, não necessariamente nesta ordem de importância. Eles conseguem um emprego aqui, uma mordomia ali, um afago mais acolá que será revertido em um bônus do contracheque que legitima a sinacura. Mas, o ponto é que a vasta maioria continua "seguindo em frente, sem nem ter com quem contar". Isso me dá na cabeça, como quem cabeceia a parede que nem formato de bola tem e muito menos possui as especificidades de uma bola, tipo tamanho, circunferência. Estou cabeceando a própria parede-bola. Que, aliás, está em longe de ser flexível, pois para ficar de pé, parede que ouse se chamar de parede requer um mínimo de estrutura sólida. Olho, então, a situação micha da vasta maioria do povão brasileiro, que nem sempre está ligado no brasileirão do momento e vejo que somos um país de Gente Humilde. Mas não a Gente Humilde do poeta, antes, aquela gente humilde que é solfejada, sussurrada, ronronada com a delicadeza e todo o sentimento de Miúcha, a longeva irmã do Chico que na sexta música de seu mais recente CD, faz-nos passear por "outros sonhos", aliás, o nome do CD. Miúcha, como estava a dizer, passeia com andar de gazela, como se pisasse em ovos recém-retirados da poedeira-mãe.

Mas já em outro verso vem toda a carga mística que termina turbinando a gente humilde brasileira. Ei-lo: "E eu que não creio, peço a Deus por essa gente, é gente humilde que vontade de chorar." Pois é, mesmo sem crer, o elemento dotado de boa vontade e todo-simpatia, eleva uma prece a um deus-nos-acuda-dos-que-não-crêem em favor dessa gente toda. E espera-se que esse mesmo deus-nos-acuda-dos-que-não-crêem atenda de prompto, sem mais delongas, sem mais bolero, lero, lero, sempre banais evocando outros tempos, anos dourados com brilho a desbotar qual imagem sacra de Ouro Preto em sua velha catedral do centro ouropretense.

O ponto é que em um tempo de mutação tão constante, onde nada fica imune ao tsunami da mudança pós-pós-moderna (ora, pôishsh!), já seria tempo de substituir o positivismo de Comte estampada na bandeira nacional do Brasil, com certos ares de militarismo demodê - leia-se Ordem e Progresso - pelo belo sentido concedido a duas outras palavras que nos falam de um brasil profundo, desses que está sempre prestes a aflorar à superfície (aliás, aflorar em que senão à superfície?): gente humilde. Sem maiúsculas porque tratamos aqui de gente dos igarapés amazônicos, gente que pisca para os búfalos da ilha do Marajó, gente que continua escavando o destino no que restou de Serra Pelada, gente que se assusta com as velhas e surradas carrancas do velho Chico (no caso, o rio São Francisco) prestes a desaguar sobre outras terras áridas, secas e vazias como aquelas do Antonio Conselheiro vistas pelos olhos de quem afirmou, com rara propriedade, ser o "nordestino, um forte, antes de tudo", ou melhor, o que se assinava Euclydes da Cunha nos seus belos Sertões.

Êpa, parece que me afastei muito do que desejava falar aqui nesse espaço prá lá de democrático e aberto a inspirações nem-tão-inspirações-assim-e-tudo. É bom que o compositor tenha dito com todas as vogais consoantes que "são casas brancas, com cadeiras na calçada" ou seria com "flores tristes e baldias na varanda"? Tasca lá os dois, que não haverá erro algum. Tá tudo no mesmo espírito. Mas, em cima, no topo da cumeeira da casa, tem que estar escrito -- de preferência ou em alto relêvo ou em dessarumadas letras em vermelho carmesim -- que ali "é um lar". E isso me lembra Macondo de Gabo. Traduzindo: macondo a cidade do realismo fantástico dos Cem Anos de Solidão, do bom Garcia Marquez, conhecido pelos íntimos macondenses, como Gabo.

Pois bem, foi ontem à tarde que ao ouvir pela 9a. vez a canção do Chico em parceria com o Garoto que me dei conta que o Brasil real é o Brasil-Macondo. E que o problema todo está no binômio Ordem e Progresso. Porque ordem rima no Brasil hodierno com autoridade e autoritarismo, ordem na ponta do fuzil e progresso somente para os latinfundiários de boa cepa, aqueles ainda herdeiros das famigeradas sesmarias que remontam a um passado colonial "auriverde pendão de minha terra que a brisa do Brasil beija e balouça" (balouça mesmo e não balança, se me refiro aos versos de Navio Negreiro), "estandarte que a luz do sol encerra as divinas promessas da esperança". Mas o Macondo que habita em nós é ainda mais antigo, daquele tempo em que as coisas ainda não possuíam nomes e para se designar algo, se apontava com o dedo indicador. Puro Macondo, puro Garcia Marquez. Mas foi na 9a. vez que vi escapulir sorrateira, quase sem me sentir, uma furtiva lágrima, pois "alguma coisa se me apertava no peito". E aí me veio com a força de uma hemorragia os versos que isso me "acontece de repente feito um desejo de eu viver sem me notar". Ora, há sempre na gente esse desejo de viver sem se notar, pois se somos notados afundamos com o peso do existir puro e simples, o que não existe não se nota. Nota-se também, mas não se nota do jeito que pensamos n-o-t-a-r. Isso posto, com toda essa claudicante clareza, avanço mais na letra e perece-me que o garoto rabiscou algo muito especial e que de perto poderia se ler muito bem: "Como a alegria / Que não tem onde encostar." Para concluir o pensamento tipo ´dízima periódica´ (será que existe mesmo esse tipo de pensamento que se encadeia tanto que nunca se pode colocar um ponto (.dot.) final no verso?) as palavras se vestem então com roupagem de gala, com chapéu panamá e terno de "linho branco que ainda no mes passado lá no campo inda era flor". Fagner tá querendo entrar na freqüência (não deixarei!) isso devido ao seu reacionarismo de direita em flor. Vade Retro Fagner. Que venha a nós o poeta de Fanatismo e Noturno. E também o da apropriação de Canteiros. Voltando ao que queria dizer desde o início dessas incautas palavras e desse aguado texto: "E aí me dá uma tristeza / No meu peito / Feito um despeito / De eu não ter como lutar." É sim. Há muito despeito por não ter como lutar. Mas nem sempre estamos atentos/atônitos a isto. E como se precisa chegar a algum ponto, senão o texto carece de sentido, noção, requer bússola que não aponte sempre e tediosamente para o Norte, o jeito é concluir mesmo que resta-me apenas pedir "a Deus por minha gente / É gente humilde / Que vontade de chorar." E quão misterioso é o país das lágrimas.

Caso o leitor desavisado não entenda que levantei todo esse texto para que seu espírito o pudesse cortá-lo tal qual o levantador no Mundial de Vôlei em Havana, o faz para seu parceiro/comparsa de jogada fazer o que tem que ser feito, apresso-me a disponibilizar o intricado e hermético texto, em sua forma original, como veio ao mundo, palavras desnudas, abertas ao entendimento:


Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar
São casas simples
Com cadeiras na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um lar
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Terra de Água Boa


Como as linhas da Estrada
A paisagem das montanhas
Os caminhos que sugere

O vinco das entranhas
O sereno que expeles
Onde sabes que me apanhas

No dorso que me fere
Suas matas, cachoeiras
Púbicas nascentes encerra

Flores da vida inteira
Mulheres de minha terra...

André Oliveira (em 07/11/2005)

Aforismo do Dia

"Aforismo é das poucas palavras incomuns que explica o comum em poucas palavras."

André Halo


"Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes."

Machado de Assis

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Hoje é um dia especial

Hoje é um dia especial. O fato de dizer isso, vocês hão de assentar, já corrobora para que essa seja a verdade. Mesmo que praticamente tudo o que vemos ao percorrer os caminhos da cidade nos leve a crer que esse mesmo “tudo” já está perdido, ainda assim repito: hoje é um dia especial.
No caminho para o trabalho ouço no rádio que o presidente da nova República da Esperança, Lula da Silva, juntamente com os ministros da esperança, está em visita a regiões pobres do Nordeste brasileiro. Ouço que a comitiva presidencial é aguardada com ansiedade pela população de Brasília Teimosa, comunidade surgida entre o bairro do Pina e o centro do Recife. Lá, pessoas se amontoam para ver de perto a esperança nas barbas de um sorridente presidente Silva. O repórter se esforça para falar enquanto as pessoas - que já vêem no próprio repórter figura ilustre e rara na região -, se esforçam para entender. O jornalista então introduz a matéria relevando o fato de algum morador ter-lhe confidenciado que, em iniciativa nada comum , as improvisadas ruas receberam no dia anterior a visita de dezenas de homens da prefeitura que trataram de correr com as ferramentas e limpar ruas, cortar árvores e matos, enfim, dar uma guaribada e tentar transformar em lugar a corruptela que receberia a comitiva esperança.
Logo em frente vejo a nova ponte inaugurada pelo recém reeleito governador de Brasília – o que demonstra ser esta Brasília também bastante teimosa. Uma obra realmente linda, monumental, moderna, exuberante mesmo aos olhos dos que, como eu, já a atravessaram inúmeras vezes desde sua chuvosa inauguração. E é mesmo uma bela vista a imagem de uma ponte, objeto que tem por princípio ligar lados opostos. Este tipo de visão nos faz bem e também corrobora a frase inicial deste texto. O dia então é cada vez mais especial.
Mais adiante, de volta às ondas do rádio, me dou conta que a qualidade do som daquele noticiário e as vinhetas mais que manjadas em nada ajudam à manutenção do meu juvenil bom dia e, mais que depressa, levo a mão à parte de traz do banco do motorista onde guardo algum remédio antitédio em forma de CDs. Com o estojo nas mãos, ou na mão, já que a outra se encontra em trabalho ininterrupto na direção, saco depressa um Djavan e em movimento automático introduzo-o no aparelho, opa! Sem viadagens, eim!? Ah, agora sim, sabia que este dia só ficaria melhor. E melhor ele fica quando me lembro que é sexta-feira, ai é demais... agora é só chegar ao trabalho e... trabalhar.
Infelizmente ando meio brigado com o trabalho, não este das crônicas que eu adoro, mas sim aquele formatadinho, nove às seis, que deixam a gente com cara de ônibus. Sim, porquê ônibus é que chega atrasado, quebra e não chega, fica lotado, descansa só no fim da noite, e chega ao fim da semana todo rasgado, pichado de palavrões e de nomes de pessoas, com a alma toda emporcalhada. Aí é um tal de liga para o médico, troca o óleo, revisa o motor e sai limpinho pra de novo encher a cabeça de porcaria e ocupar os poucos assentos com coisa que mal embarcou e já quer descer no próximo ponto.
Mas hoje é sexta e a gente se dá ao luxo de não parar em qualquer ponto, de seguir em frente, com destino certo e o pé no fundo em direção ao fim-de-semana. Pá, panã, nã, passa mais além do céu de Brasília, traço do arquiteto / gosto tanto dela assim...

(Escrito em 10.01.2003)

Trecho do Diário de Papanattas



Hoje estou me sentindo melhor. Quase nada me perturbou desde o passeio no pátio. Minha cabeça ainda dói um pouco, afinal esse lugar tem a mesma característica que outrora havia na sala de minha casa, lá no Jardim Botânico: janelas com uma vista linda, de um gramado verdíssimo que dão uma vontade incontrolável de atirar-me com tudo a elas. Mas há sempre algum engraçadinho que na hora h me engana, sumindo com a janela dali ou de qualquer lugar que ela resolva aparecer novamente. Até hoje, só uma vez, consegui perpassá-la. Foi lá em casa, antes de minha mulher me presentear com estas férias aqui neste Resort, muito bom – é bom que se diga - , mas que a bem da verdade hospeda pessoas de muito estranhos hábitos - mas disso tratemos em outra ocasião. Enfim, vagava pela sala assobiando um solo de contrabaixo que sabia de cor quando pela primeira vez apareceu. Lá estava ela, a janela, com uma moldura em madeira envelhecida, o cheiro de carvalho e de chuva e lá, do outro lado, lindo, verdíssimo, a convidar-me para o mergulho inaugural, estava o olente gramado; tomei o fôlego que me havia faltado ante o vislumbre inicial, tomei também alguma distancia na pequena sala e iniciei a corrida para a felicidade verde que aquele imenso tapete impingia ao ar. E num salto me atirei, como havia de me atirar para sempre: com destino à felicidade clorofilada. Não me lembro de ter caído ou deslizado pelo verde chão eterno. Em verdade, não me lembro de nada a não ser acordar com essa surpresa proporcionada por minha amada, porém ausente mulher.
Lembro da minha primeira visita ao pátio, assim que acordei e... agora me passa pela cabeça a lembrança de sentir uma dor parecida com essa que sinto agora. Que coincidência! Enfim, o pátio estava em dia de festa, todos tomando seu Soro da Juventude, fato sobre o qual um novo amigo logo me pusera a par e que eu achei de extremo bom gosto por parte do governo - era o governo que nos fornecia tal solução, fato também noticiado pelo simpático e recém conhecido colega de hospedagem. Que lindo dia, apenas uma tonteira, provavelmente efeito do soro é que me fazia perder de vista algumas janelas que desde então me aparecem até com certa freqüência. Ontem, aliás, lembro-me vagamente de ter visto uma, depois não me lembro de mais nada. Que lugar!
Agora, além da dor de cabeça ter aumentado um pouco exatamente na região onde, não sei a razão, tenho uma protuberanciazinha, me acomete um sono medonho e por essa, e pela razão de que as luzes logo se apagarão – regra comum em hotéis de luxo, segundo relatou o referido colega – devo me recolher. Logo mais, pela manhã, após o desjejum, escreverei sobre as visitas ao Chefe de Estado da Birmânia, que me renderam também um título por aquelas bandas e que me fora conferido pelo próprio “figurão” que – falem baixo – está também hospedado neste hotel.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Poema da Luz da Manhã




Flauta doce, doce história
Amantes de uma nova era
Ardentes na paixão sem cura
Vivendo da ausência pura e
Amando de um amor de fera
Que sem iludir só espera
A desilusão futura

Fui escravo e também fui barão
Das dores, na minha enxovia
dos versos lentos do senão
doce lira, fina agrura
liberta pro sol deste dia
derrama a poesia no chão

A luz que me dava alforria
era amor, o astuto vilão
que na noite escura de elegia
nada vê, a espera do dia e
enquanto faz luz na poesia
faz sombra em meu coração

]]CONVOCATA[[

Considere-se este pasquim uma publicação livre e independente.
Menospreze-se toda e qualquer censura, principalmente a interna, no empreendimento que é a confecção de qualquer idéia e sua forma definitiva no papel.