quarta-feira, 25 de julho de 2007

Uma pausa (parte III)

O pequeno cemitério era composto por um par de morrotes que se erguiam logo à frente da cordilheira que guardava a pequena Tonstendale do bravio e incessante vento norte, tão comum por ali. Imediatamente atrás dos morrotes, esgueirando-se entre a cordilheira e estes, escorreria um córrego que alimentaria o velho Woodloop, não fosse a época de temperaturas baixas a impedir qualquer arroubo de fluidez da natureza. Ash Hill então, apenas era notado pelo contraste estabelecido entre a paisagem minimalista dos morros cobertos pelo gelo e as séries de pequenas cruzes e cercas escuras a delinear a geografia simples do lugar.
O local onde jazeria o corpo do Sr. O’Brian havia sido disponibilizado às pressas pelo prefeito Dwight Prudhoe que correu a fazer saber a todos que o ato, mínimo segundo ele, havia sido “uma cortesia da municipalidade para com um de seus mais carismáticos cidadãos”. Contudo, o endereço J37W, guiava o cortejo a um local um tanto quanto escondido, em virtude de uma depressão natural do terreno. “Big” Due, como era conhecido o rechonchudo e bonachão prefeito, até que tentou melhor locação, mas não queria se indispor com o reverendo Smith, que sugeriu um local mais simples para enterrar o leiteiro, alegando não haver necessidade de desperdiçar bom terreno, já escasso em Ash Hill, com “alguém que sequer teria família a visitá-lo no dia dos mortos”. Da pouca nobreza do local escolhido, porém, surgiu o sítio perfeito para acolher as dezenas de presentes em torno da pequena cova, já que o relevo oferecia uma arquibancada tão natural quanto incomum, onde não havia alegria ou gritos e nem nada se comemorava.
Após rápida acomodação, o reverendo Ronald Smith procedeu ao início do funeral. Suas palavras arrostavam os sentimentos dos que ali estavam. Eram vazias de sentido emocional e soavam como a explicação formal de um servidor público à cerca de um procedimento qualquer, no caso, o encaminhamento de uma alma aos céus. A razão da indiferença indisfarçável era óbvia, pois a igreja jamais reconhecera o dom do Sr. O’Brian. Ao contrário, por meio dos sermões daquele mesmo representante, procurara várias vezes dissuadir seus fiéis da idéia de valer-se das antevisões do velho leiteiro, a exemplo do ocorrido na semana que antecedeu o terrível terremoto de 1864.
Naquela ocasião, uma camponesa desconhecida havia percorrido léguas a cavalo desde o vilarejo onde morava, sob forte frio, apenas para uma visita à velha cabana do Sr. O’Brian. O que ela ouviu acabou se espalhando e amedrontando o pessoal não só de Tonstendale, mas de toda a região. Foi durante a missa de domingo, quando o sermão já se encaminhava para o seu fechamento, que o reverendo Smith, acrescentando volume gradualmente à voz já notadamente alterada, perdeu o controle e, praticamente aos berros, desclassificou e expulsou o velho leiteiro da igreja acrescentando: “... e aqueles aos quais minha atitude esteja desagradando aviso: ninguém está acima das palavras e ensinamentos de Cristo, tampouco o está dos poderes de Deus, nosso único e leal salvador e que, a partir de hoje, sob este santo teto, não serão mais tolerados tais esoterismos fantasiosos”. Passados cinco dias exatos, em uma sexta-feira santa, um dos mais fortes abalos sísmicos da história do Alasca praticamente arrasaria a pequena cidade e deixaria como sua maior cicatriz a queda e consequente destruição da torre principal da Congregação Luterana de Tonstendale, não atingindo por pouco a casa paroquial.
.
"Uma pausa" é uma obra conjunta, escrita por André Halo (do blog Penúltima Palavra) e Dante Accioly (do blog Página em Construção). É possível que outras pessoas e outros blogs passem a contribuir com a história ao longo das próximas edições. Para acompanhar todos os capítulos do conto, confira a seção "Uma pausa" (na coluna à direita deste site).
.
Links para Parte I e Parte II

Nenhum comentário: