terça-feira, 12 de junho de 2007

Elaborando sobre gente humilde e Gente Humilde

Como dizia o compositor: "E aí me dá uma inveja dessa gente, que vai em frente sem nem ter com quem contar." É isso mesmo, dos quase cento e noventa milhões de brasileiros, a vasta maioria leva ao pé da letra a letra de Gente Humilde: segue em frente apesar de tudo e todos e sempre com a indefectível sina do "sem ter com quem contar". Cada vez mais um Brasil dos privilegiados e dos semi-privilegiados, aquela casta dos que desfrutam do apoio (financeiro, moral e/ou imoral) que provêm dos tais privilegiados. São os donos da mídia, os donos do executivo, legislativo e judiciário, não necessariamente nesta ordem de importância. Eles conseguem um emprego aqui, uma mordomia ali, um afago mais acolá que será revertido em um bônus do contracheque que legitima a sinacura. Mas, o ponto é que a vasta maioria continua "seguindo em frente, sem nem ter com quem contar". Isso me dá na cabeça, como quem cabeceia a parede que nem formato de bola tem e muito menos possui as especificidades de uma bola, tipo tamanho, circunferência. Estou cabeceando a própria parede-bola. Que, aliás, está em longe de ser flexível, pois para ficar de pé, parede que ouse se chamar de parede requer um mínimo de estrutura sólida. Olho, então, a situação micha da vasta maioria do povão brasileiro, que nem sempre está ligado no brasileirão do momento e vejo que somos um país de Gente Humilde. Mas não a Gente Humilde do poeta, antes, aquela gente humilde que é solfejada, sussurrada, ronronada com a delicadeza e todo o sentimento de Miúcha, a longeva irmã do Chico que na sexta música de seu mais recente CD, faz-nos passear por "outros sonhos", aliás, o nome do CD. Miúcha, como estava a dizer, passeia com andar de gazela, como se pisasse em ovos recém-retirados da poedeira-mãe.

Mas já em outro verso vem toda a carga mística que termina turbinando a gente humilde brasileira. Ei-lo: "E eu que não creio, peço a Deus por essa gente, é gente humilde que vontade de chorar." Pois é, mesmo sem crer, o elemento dotado de boa vontade e todo-simpatia, eleva uma prece a um deus-nos-acuda-dos-que-não-crêem em favor dessa gente toda. E espera-se que esse mesmo deus-nos-acuda-dos-que-não-crêem atenda de prompto, sem mais delongas, sem mais bolero, lero, lero, sempre banais evocando outros tempos, anos dourados com brilho a desbotar qual imagem sacra de Ouro Preto em sua velha catedral do centro ouropretense.

O ponto é que em um tempo de mutação tão constante, onde nada fica imune ao tsunami da mudança pós-pós-moderna (ora, pôishsh!), já seria tempo de substituir o positivismo de Comte estampada na bandeira nacional do Brasil, com certos ares de militarismo demodê - leia-se Ordem e Progresso - pelo belo sentido concedido a duas outras palavras que nos falam de um brasil profundo, desses que está sempre prestes a aflorar à superfície (aliás, aflorar em que senão à superfície?): gente humilde. Sem maiúsculas porque tratamos aqui de gente dos igarapés amazônicos, gente que pisca para os búfalos da ilha do Marajó, gente que continua escavando o destino no que restou de Serra Pelada, gente que se assusta com as velhas e surradas carrancas do velho Chico (no caso, o rio São Francisco) prestes a desaguar sobre outras terras áridas, secas e vazias como aquelas do Antonio Conselheiro vistas pelos olhos de quem afirmou, com rara propriedade, ser o "nordestino, um forte, antes de tudo", ou melhor, o que se assinava Euclydes da Cunha nos seus belos Sertões.

Êpa, parece que me afastei muito do que desejava falar aqui nesse espaço prá lá de democrático e aberto a inspirações nem-tão-inspirações-assim-e-tudo. É bom que o compositor tenha dito com todas as vogais consoantes que "são casas brancas, com cadeiras na calçada" ou seria com "flores tristes e baldias na varanda"? Tasca lá os dois, que não haverá erro algum. Tá tudo no mesmo espírito. Mas, em cima, no topo da cumeeira da casa, tem que estar escrito -- de preferência ou em alto relêvo ou em dessarumadas letras em vermelho carmesim -- que ali "é um lar". E isso me lembra Macondo de Gabo. Traduzindo: macondo a cidade do realismo fantástico dos Cem Anos de Solidão, do bom Garcia Marquez, conhecido pelos íntimos macondenses, como Gabo.

Pois bem, foi ontem à tarde que ao ouvir pela 9a. vez a canção do Chico em parceria com o Garoto que me dei conta que o Brasil real é o Brasil-Macondo. E que o problema todo está no binômio Ordem e Progresso. Porque ordem rima no Brasil hodierno com autoridade e autoritarismo, ordem na ponta do fuzil e progresso somente para os latinfundiários de boa cepa, aqueles ainda herdeiros das famigeradas sesmarias que remontam a um passado colonial "auriverde pendão de minha terra que a brisa do Brasil beija e balouça" (balouça mesmo e não balança, se me refiro aos versos de Navio Negreiro), "estandarte que a luz do sol encerra as divinas promessas da esperança". Mas o Macondo que habita em nós é ainda mais antigo, daquele tempo em que as coisas ainda não possuíam nomes e para se designar algo, se apontava com o dedo indicador. Puro Macondo, puro Garcia Marquez. Mas foi na 9a. vez que vi escapulir sorrateira, quase sem me sentir, uma furtiva lágrima, pois "alguma coisa se me apertava no peito". E aí me veio com a força de uma hemorragia os versos que isso me "acontece de repente feito um desejo de eu viver sem me notar". Ora, há sempre na gente esse desejo de viver sem se notar, pois se somos notados afundamos com o peso do existir puro e simples, o que não existe não se nota. Nota-se também, mas não se nota do jeito que pensamos n-o-t-a-r. Isso posto, com toda essa claudicante clareza, avanço mais na letra e perece-me que o garoto rabiscou algo muito especial e que de perto poderia se ler muito bem: "Como a alegria / Que não tem onde encostar." Para concluir o pensamento tipo ´dízima periódica´ (será que existe mesmo esse tipo de pensamento que se encadeia tanto que nunca se pode colocar um ponto (.dot.) final no verso?) as palavras se vestem então com roupagem de gala, com chapéu panamá e terno de "linho branco que ainda no mes passado lá no campo inda era flor". Fagner tá querendo entrar na freqüência (não deixarei!) isso devido ao seu reacionarismo de direita em flor. Vade Retro Fagner. Que venha a nós o poeta de Fanatismo e Noturno. E também o da apropriação de Canteiros. Voltando ao que queria dizer desde o início dessas incautas palavras e desse aguado texto: "E aí me dá uma tristeza / No meu peito / Feito um despeito / De eu não ter como lutar." É sim. Há muito despeito por não ter como lutar. Mas nem sempre estamos atentos/atônitos a isto. E como se precisa chegar a algum ponto, senão o texto carece de sentido, noção, requer bússola que não aponte sempre e tediosamente para o Norte, o jeito é concluir mesmo que resta-me apenas pedir "a Deus por minha gente / É gente humilde / Que vontade de chorar." E quão misterioso é o país das lágrimas.

Caso o leitor desavisado não entenda que levantei todo esse texto para que seu espírito o pudesse cortá-lo tal qual o levantador no Mundial de Vôlei em Havana, o faz para seu parceiro/comparsa de jogada fazer o que tem que ser feito, apresso-me a disponibilizar o intricado e hermético texto, em sua forma original, como veio ao mundo, palavras desnudas, abertas ao entendimento:


Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem nem ter com quem contar
São casas simples
Com cadeiras na calçada
E na fachada
Escrito em cima que é um lar
Pela varanda
Flores tristes e baldias
Como a alegria
Que não tem onde encostar
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar

Um comentário:

André Halo disse...

Tom,

o que dizer? Digo o que senti, tendo-o, amigo de sempre e de nunca, na caixa preta que guardo dos nossos encontros (chope x cerveja sem álcool - que para mim é como pizza de mussarela) e que se chama saudade.
Fiquei imaginando a sua quadrada - só no formato externo - cabeça a rodar entre os versos do Chico-não-rio, levado e elevado pelos acordes magicamente precisos do nosso - como é bom dizer -, nosso Garoto. Vi a sua cabeça lá a rodar, talvez sentado no sofá de casa, mas muito provavelmente no carro, e as mãos, após, a tentar resgatar as impressões dessa viagem.
COMO É BOM TÊ-LO DE VOLTA AQUI, NO NOSSO PENÚLTIMA!